segunda-feira, 1 de julho de 2013

fortaleza, massapê

e depois de mais uma noite de viagem, chego em fortaleza. é manhã cedo e meu ônibus para massapê só sai às 14h, mas decido ficar pela rodoviária. converso um tempo com a moça que cuida do banheiro, ela me conta que vai à igreja, mas que não é santa - celebro com ela: não ser santa é importante! - e que já teve dois de seus mistérios revelados . seus mistérios são suas doenças, que ela cita com um certo orgulho austero. pergunta se tenho crença, digo que tenho muita crença na vida. ela gosta da minha resposta e sorri pra mim. fico pela rodoviária lendo uma revista, espantando moscas, tomando inúmeros cafés com leite já adoçados e, portanto, doces demais.

quando enfim embarco, não é sem sentir uma emoção, uma tremura.

quando  era criança, lembro da minha avó me dizendo que na sua infância em massapê gostava de deitar com a barriga pra cima olhando as nuvens. dizia: o céu lá não tem igual! e eu, depois de quinze dias de estrada, ia ver com os meus olhos o céu de massapê.

a viagem até lá é lenta e bonita. a densa vegetação que nos acompanha vai sendo aos poucos tomada pela secura do interior. montanhas viram pedras, o gado dá lugar a bodes e cabritinhos, a terra fica aparente e clara. entrar no sertão me deixou com falta de ar. não entendia bem essa reação física, como se a aparente secura me tirasse o fôlego acostumado com ares marítimos. anoitece bruscamente.

chego em massapê depois das 19h. a noite é quente e pouco iluminada. tento achar a pousada antes de fazer qualquer outra inspeção pela cidade porque já estou há quase 24h pela estrada . a encontro sem muita dificuldade, saio para comer e tomo uma cerveja com a qual brindo a minha íntima vitória.

o dia seguinte foi todo deixar que a cidade se mostrasse para mim, andar sem rumo pelas pequenas ruas, fotografar o que me parecesse belo e também abrir mão de muitas fotos: cada gesto meu parecia ser observado pelos moradores em suas cadeiras na calçada de domingo. muitos questionavam minhas fotos, outros perguntavam sobre aspectos da minha aparência e sobre minha procedência. massapê não está acostumada a ser visitada, nem fotografada. não é cidade para turismo, é uma cidade viva, feita de vidas reais que se estendem sobre seu solo seco e sob seu céu azul-insano.

e me emociono porque noto que o céu é, de fato, muito diferente do de outros lugares. o céu e o sol parecem estar muito mais perto da terra, daí tanta beleza - e também tanto calor. olhando para cima, imagino uma sobreposição de tempos: minha avó criança brincando com os olhos e eu, adulta, contemplando o mesmo céu. fosse um filme, em algum instante, nós duas trocaríamos olhares: uma olhando pro espaço vazio do corpo da outra. ela criança encarando meu corpo ainda não nascido e eu olhando seu rosto irrecuperável.

com um jogo de transparências impossíveis e encontros sutilíssimos passei por massapê. e temi não estar a sua altura. tudo me parecia belo e agreste. olhava, com olhos impróprios, para os interiores das casas revelados por suas muitas portas entreabertas. e cada casa era um universo de retratos antigos, imagens de santos, altares, móveis antigos, redes, cores. o interior e seus interiores. rocei em massapê como pude, com minha pele de poros muito abertos e atentos. e retive uma impressão de sede, de um azul cintilante, de uma vida de suor, de alegrias singelas, de mistérios próprios, de lentidões.

um dos momentos mais especiais foi quando a dona maria de lourdes, a senhora mais antiga da cidade, me recebeu em sua casa. fui até ela perguntar se ela sabia algo da minha vó ou dos meus bisavós. de olhar atento e amoroso, não sabia nada sobre minha família, mas contou um pouco sobre sua vida. morava naquela grande e bela casa apenas com sua irmã cega: 'não deixo ela nunca só porque ela não tem a luz dos olhos'. não se casou porque não era seu destino e não estudou porque preferia brincar. nunca se achou fotogênica, por isso não tinha fotos de sua juventude para me mostrar. mas aceitou que eu tirasse uma foto dela em sua sala com a condição que ela estivesse virada de costas para mim.

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