quarta-feira, 3 de julho de 2013

time

em massapê, enquanto eu andava sem rumo e fotografava, esses meninos jogavam bola. lá pelas tantas, um deles me chamou e perguntou se eu queria fotografar o time. nisso, eles já estavam todos alinhados, na posição da foto, rindo muito. antes de fotografar perguntei se o time tinha nome, responderam rápido: terra nova futebol clube.


segunda-feira, 1 de julho de 2013

fortaleza, massapê

e depois de mais uma noite de viagem, chego em fortaleza. é manhã cedo e meu ônibus para massapê só sai às 14h, mas decido ficar pela rodoviária. converso um tempo com a moça que cuida do banheiro, ela me conta que vai à igreja, mas que não é santa - celebro com ela: não ser santa é importante! - e que já teve dois de seus mistérios revelados . seus mistérios são suas doenças, que ela cita com um certo orgulho austero. pergunta se tenho crença, digo que tenho muita crença na vida. ela gosta da minha resposta e sorri pra mim. fico pela rodoviária lendo uma revista, espantando moscas, tomando inúmeros cafés com leite já adoçados e, portanto, doces demais.

quando enfim embarco, não é sem sentir uma emoção, uma tremura.

quando  era criança, lembro da minha avó me dizendo que na sua infância em massapê gostava de deitar com a barriga pra cima olhando as nuvens. dizia: o céu lá não tem igual! e eu, depois de quinze dias de estrada, ia ver com os meus olhos o céu de massapê.

a viagem até lá é lenta e bonita. a densa vegetação que nos acompanha vai sendo aos poucos tomada pela secura do interior. montanhas viram pedras, o gado dá lugar a bodes e cabritinhos, a terra fica aparente e clara. entrar no sertão me deixou com falta de ar. não entendia bem essa reação física, como se a aparente secura me tirasse o fôlego acostumado com ares marítimos. anoitece bruscamente.

chego em massapê depois das 19h. a noite é quente e pouco iluminada. tento achar a pousada antes de fazer qualquer outra inspeção pela cidade porque já estou há quase 24h pela estrada . a encontro sem muita dificuldade, saio para comer e tomo uma cerveja com a qual brindo a minha íntima vitória.

o dia seguinte foi todo deixar que a cidade se mostrasse para mim, andar sem rumo pelas pequenas ruas, fotografar o que me parecesse belo e também abrir mão de muitas fotos: cada gesto meu parecia ser observado pelos moradores em suas cadeiras na calçada de domingo. muitos questionavam minhas fotos, outros perguntavam sobre aspectos da minha aparência e sobre minha procedência. massapê não está acostumada a ser visitada, nem fotografada. não é cidade para turismo, é uma cidade viva, feita de vidas reais que se estendem sobre seu solo seco e sob seu céu azul-insano.

e me emociono porque noto que o céu é, de fato, muito diferente do de outros lugares. o céu e o sol parecem estar muito mais perto da terra, daí tanta beleza - e também tanto calor. olhando para cima, imagino uma sobreposição de tempos: minha avó criança brincando com os olhos e eu, adulta, contemplando o mesmo céu. fosse um filme, em algum instante, nós duas trocaríamos olhares: uma olhando pro espaço vazio do corpo da outra. ela criança encarando meu corpo ainda não nascido e eu olhando seu rosto irrecuperável.

com um jogo de transparências impossíveis e encontros sutilíssimos passei por massapê. e temi não estar a sua altura. tudo me parecia belo e agreste. olhava, com olhos impróprios, para os interiores das casas revelados por suas muitas portas entreabertas. e cada casa era um universo de retratos antigos, imagens de santos, altares, móveis antigos, redes, cores. o interior e seus interiores. rocei em massapê como pude, com minha pele de poros muito abertos e atentos. e retive uma impressão de sede, de um azul cintilante, de uma vida de suor, de alegrias singelas, de mistérios próprios, de lentidões.

um dos momentos mais especiais foi quando a dona maria de lourdes, a senhora mais antiga da cidade, me recebeu em sua casa. fui até ela perguntar se ela sabia algo da minha vó ou dos meus bisavós. de olhar atento e amoroso, não sabia nada sobre minha família, mas contou um pouco sobre sua vida. morava naquela grande e bela casa apenas com sua irmã cega: 'não deixo ela nunca só porque ela não tem a luz dos olhos'. não se casou porque não era seu destino e não estudou porque preferia brincar. nunca se achou fotogênica, por isso não tinha fotos de sua juventude para me mostrar. mas aceitou que eu tirasse uma foto dela em sua sala com a condição que ela estivesse virada de costas para mim.

sábado, 29 de junho de 2013

uma parada antes

escrito com tinta rosa e letra cursiva na porta do banheiro de uma parada qualquer entre pernambuco e o ceará: 

"Passei por aqui indo encontrar com o grande amor da minha vida! Ame muito porque o tempo passa sem dó e rápido!"

quinta-feira, 27 de junho de 2013

recife

o privilégio da diferença. caminhar sozinha, sem conhecer as feições da chegada. descobrir o trajeto enquanto o invento. chuva e sol se intercalam. mosquitos me atacam. rolo sem sono numa cama desconhecida. ilumino a noite com o exercício da mente esvaziada, recados rápidos, idas constantes ao lado de fora, sonhos-prótese.

depois o encontro com  uma amazona de mármore, três musas que dormem, engolidores de espada estáticos. as musas trágicas de brennand e o delírio feito de barro. um marfim pleno e vulgar. globos antigos, uma estátua que ri, que pisa em mim. tapetes antigos que abrem uma selva obscura onde tudo se rende a tudo. e as degoladas que esperam calmamente pelo olhar intruso.

uma anatomia das partes secas da terra. e tudo que inunda sorrateiramente. só me resta  mesmo amar o transitório.  amar o meu caminho e minhas pernas, mesmo sem pressentir o próximo passo. amar o que virá apenas pelo seu respiro, sua precipitação. desfrutar do meu cansaço, da minha íntima discórdia. tocar nas minhas mãos para me acalmar, ser forte porque sempre vulnerável. reconhecer a solidão que é minha pele. e sentir tudo arder, na ânsia do sem nome.

diante de tantos altares, o som de tantos sinos e atabaques, tantos nomes para o mistério, só me cabe festejar o próprio nomear, ofício maculado pela vida e suas texturas, suas farpas.  receber gentilezas que me desmontam. aprender da vida que não há verdade, só há celebração.

a escrita como escudo: precária elevação, o fôlego mais difícil, a outra travessia. contar para viver.  "desde esse dia, em hora incerta, volta essa angústia extrema, e se não conto a história o coração me queima".

 e o final é o imprescindível em todas as coisas.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

olinda e recife

depois de doze horas em um ônibus noturno, chego à rodoviária de recife. a vertigem, ao chegar numa nova cidade, não é mais novidade, mas sempre faz meu coração acelerar. tomo um suco delicioso de alguma fruta do norte, compro minha passagem para a próxima cidade e vou descobrindo o jeito de chegar até meu hostel em olinda.  pego um metrô lotado até a estação recife, depois ônibus até o bairro do carmo. consigo uma vaga num quarto coletivo onde, por enquanto, estou apenas eu. saio para explorar a cidade.

a primeira coisa que quero visitar é o farol de olinda, cenário muitas vezes descrito em avalovara. mas acabo parando para visitar igrejas e um lindo monastério franciscano no caminho até lá. depois vou para a rua do bonfim e sigo pelas ruelas da cidade alta. paro para uma cerveja, converso com pessoas que conheço por ali e acabo a noite vendo uma apresentação de músicas de umbanda tocadas ao vivo com atabaques e voz. um senhor mais velho, por vezes, cantava alguns pontos muito lindos de um jeito muito delicado. me senti sortuda por estar ali. voltei pro hostel pegando uma chuvinha leve da qual não tentei fugir.

hoje fui andar pelas ruas do recife antigo. entre as ruas movimentadas, sob um sol intenso, entrei em mais igrejas, nas quais aprendi a admirar não apenas as arquiteturas e os talhos, mas os pequenos oratórios onde, aqui no nordeste, é comum encontrar peças de cera com formato de partes do corpo, ex votos e muitos, inúmeros, bilhetinhos, enfiados nas frestas dos altares. confissões feitas aos santos preenchem as reentrâncias dos oratórios, onde repousam essas secretas intimidades e seus muitos mistérios.

depois ando no mercado central, onde me sinto impelida a comprar muitas coisas, mas me controlo. lembro que terei que levar tudo nas minhas costas. compro algumas fotos de lampião e maria bonita e alguns folhetos de cordel. vejo um senhor vendendo caranguejos vivos no lado de fora do mercado. a visão dos animais amarrados a pedaços de madeira me hipnotiza. fico um tempo ali vendo aquela estranha dança quase imóvel. depois me rendo ao grandioso mar de olinda e fico por muito tempo encarando o horizonte, com suas promessas de navegações, e deixo o barulho de tudo em voltar inundar o meu silêncio.


segunda-feira, 24 de junho de 2013

salvador

deposito grande atenção ao que me escapa. meu pensamento, cheio, longe de mim e depois repleto do acontecimento presente. salvador é quente, salva porque perde, abafa, queima. monumentos ruína, ruas-abismo-serpentes e as grandes águas onde trafegam barcos, todos os santos, poderosos orixás e meus olhos que nadam. nadadora sem trajes banho, mergulho com os olhos abertos, corpo todo olho, imersa, sem ar, depois insone dentro da noite escura, onde pipocam os foguetes e os muitos estalidos de são joão.

queimo minha língua em seus temperos, seus licores de frutas do norte, queimo minha pele no seu implacável sol. salvador recende à história, emana silenciosa doutrina que aponta para a felicidade-negra-guerreira. zumbi espreita bispo sardinha na praça da sé. sou embalada pela percussão dos surdos, pelo peso da minha própria voz, pelo forró que danço quieta, com as mãos e a língua, lidando com os limites dos meus ossos. e tudo tem gosto de fome, corpos famintos que pedem comida, dinheiro, voz, atenção. e minha grande fome vai junto escapando pelos poros, nos sonhos, nas mãos que afastam e acolhem, entrelaçando a profunda recusa com o grande sim.

visito faróis, monastérios, tabernas. faço minhas silenciosas preces diante de uma parede nua. quero ir ao interior, mas, de algum modo, a euforia das festas me repele. decido seguir ao norte. rumo ao recife, atracadouro de sonhos, cenário-palavra de avalovara, com desejo de maracatu, acaso, alegrias simples e sustos misteriosos. agora vou chegando na véspera do meu destino. carregando o próprio destino como fábula, fazendo do corpo instrumento para a vida que se desenrola em invenção. o corpo se forja no peso, nos sustos, nos confortos provisórios, desmaia e reluz.

estou calçando os instantes como sapatos.

sábado, 22 de junho de 2013

BH e Salvador

êxtases provisórios na rodoviária. leio um livro do jodorowsky que o gustavo sabiamente me deu e tenho arrepios que vão dos pés a cabeça. sinto muita gratidão. agradeço silenciosamente à coragem, à vida, aos bons acasos. choro de leve e ninguém em volta percebe. perguntam de onde sou, pra onde vou e ganho alguns sorrisos e votos de boa viagem que retribuo alegremente.

durante o dia, em BH, andei pelas ruas do centro, almocei no mercado central aliviada por ter conseguido comprar minha passagem com facilidade, mas ainda sem ter reserva certa em nenhum hotel e um pouco preocupada com a perspectiva de chegar à noite em salvador. mas me deixo andar com tranquilidade pelos corredores. fico muito impressionada com as lojas que vendem animais. há muitas aves engaioladas, até pavões. fico muito tempo os olhando ali, impressionada e angustiada ao mesmo tempo. depois ando nas ruas perto da rodoviária, me aproximo de um aglomerado de manifestantes, mas logo me afasto. passo o dia esperando ser hora do meu embarque, tomando cafés com leite e lendo o livro do jodo.

pego um lotado metrô e vou à outra estação, onde sai meu ônibus. nele, um susto: está lotado, completamente cheio, de homens. fora uma moça acompanhada do marido e uma mãe com um filho, apenas eu. fico um pouco tensa, mas me sento no meu lugar e o ônibus parte. aos poucos, vou me tranquilizando. o ônibus fica em silêncio durante a madrugada e tento dormir. acho que cochilo, ou tenho alguns delírios de vigília sonolenta e quando abro os olhos, tempo depois, já é dia claro.

a paisagem é linda. montanhas cercadas de névoa e, outras vezes, montes ensolarados e um pouco de névoa  condensada em suas reentrâncias. passo o dia vendo a paisagem, descendo em paradas em cidadezinhas inacreditáveis e cochilando. aos poucos, noto que os campos vão ficando áridos, é possível ver vários cactus, bodes e pequenos cabritos soltos pelas planícies: entramos mais fundo no interior da bahia.

depois de 25 horas, chego na tumultuada rodoviária de salvador. sinto uma vertigem, porque não sei bem pra onde ir. mas sigo a intuição de novo, pego um táxi e vou pra um dos hostels que eu tinha selecionado. a escolha se mostrou certa, o hostel é ótimo, acolhedor e muito em conta. estou no quarto coletivo e conheço uma simpática moça carioca, com quem converso um pouco antes de dormir um  ótimo sono.

hoje acordo e volto à rodoviária, que está simplesmente lotada. todos querem ir rumo ao interior por causa das festas de são joão. eu também quero ir e compro uma passagem para a cidade de cruz das almas, saindo na segunda de manhã. depois ligo para algumas pousadas da cidade, mas todas se supervalorizam durante essa época, então fico em dúvida se devo mesmo ir. me atraiu no são joão dessa cidade a famosa guerra de espadas que quero muito ver.  

à tarde, ando pelo pelourinho. vejo o olodum tocar e passeio pelas ruas. mas o clima está meio pesado, o choque todo espalhado por aí e decido não ficar lá até muito tarde. volto de ônibus pra barra, onde estou, com algum esforço, já que o trânsito todo foi alterado por causa do jogo. agora anoto mais opções de pousadas de cruz das almas e cresce em mim o desejo de ir ver uma festa de são joão no interior.


quinta-feira, 20 de junho de 2013

catas altas

depois sou só eu e minha mochila novamente. escuto de muitas pessoas a frase 'você não é daqui, né'. e não tenho uma resposta rápida pra dizer. florianópolis? rio? não há como não repensar a ideia de pertencer a algum lugar.  leio hilda hilst em uma mureta com uma vista linda para as montanhas. 'tu não te moves de ti' é o livro que propositalmente levo comigo.

pego um ônibus e vou para catas altas. meu joelho dói muito - vestígios das ruas de ouro preto no meu corpo. fico um pouco aflita, pois toda essa viagem só faz sentido na medida em que eu puder continuar caminhando. peço algumas dicas por telefone para minha mãe: joelheira ortopédica + anti-inflamatório + emplastro. invisto em todos os itens e em poucas horas já me sinto melhor. a viagem de ônibus até catas altas foi ótima. muitas visões bonitas de imensas montanhas verdes. pessoas as mais diversas entrando e saindo do ônibus e passagem por pequenas cidades, com casinhas antigas e simples e de beleza imensa. cheguei em catas altas umas duas horas depois.

a cidade que idealizei deserta, na verdade, me parece bem povoada. vejo muitas pessoas andando lentamente pelas ruas e algumas paradas nas portas das casas e do comercio. fico hospedada em uma pousada que fica na casa de uma artista (ceramista, pintora, gravurista) chamada letícia. ela me deu um belo quarto, todo rodeado por janelas de onde posso ver umas montanhas altíssimas da serra da caraça.

a mochila que tanto pesa em minhas costas também me abre portas. letícia me fez um desconto generoso ao perceber minha condição de viajante mochileira. quando cheguei, ela estava modelando um grande vaso em formato de gato. disse que um de seus gatinhos havia morrido no dia anterior, que ela tinha começado o vaso olhando pra ele e agora ia termina-lo em sua homenagem.

ando pela cidade deslumbrada e tirando várias fotos. puxo papo com um senhor e peço para fotografa-lo na frente de sua casa. ele consente e logo pergunta se sou casada. essa pergunta sempre me assusta, apesar de acreditar que, no caso, ele estivesse apenas puxando conversa. mas me retraio um pouco, me vendo na condição de 'moça sozinha em cidade pequena'. depois noto que há poucas mulheres pela rua e fico levemente preocupada, sem saber o quanto devo me prevenir.

depois percebo que posso relaxar. o senhor dono do restaurante onde janto é gentil e faz meu jantar por 7 reais, em vez de 10, porque eu comi pouco. pequenas coisas assim me cativam e entendo as gentilezas que recebo pelo percurso como pequenas trocas afetivas. na pousada, fico um tempo vendo tevê com letícia, que me promete me levar no seu ateliê no dia seguinte.

meus ossos desconjuntados, se atritando. sinto algumas dores, que carrego não sem sentir algum orgulho. novamente pela estrada, cruzando mares de montanhas. amedrontada por estar indo longe demais, muito ao centro, pro interior. depois completamente grata por estar aqui. eu estou onde queria estar e me trouxe aqui com minhas próprias pernas. pernas que vagueiam pelas ruas de pedra, se estarrecem diante da serra e do sol que se põe queimando o horizonte ondulado. toda hora pressinto o peso da solidão e então me dou conta dessa rara qualidade que preciso cultivar: estar cheia mesmo quando vazia, estar vazia mesmo quando cheia. feito taça, potente em meu esvaziamento, aberta para abrigar os sumos e os muitos vinhos do mundo. de corpo inteiro, mesmo quando só. solidão que acolhe e é acolhida pelos cheios do mundo.

no dia seguinte, ando sonolenta pelas rua irregulares. tomo café e ando por aí fotografando a cidade. enquanto sinto meu espírito convulsionar, na ânsia por distrações e estímulos, os moradores da cidade andam com calma e alegria pelas ruas. aqui não há sequer uma livraria ou acesso a internet. vivem em outro tempo, em outro mundo. uma cidade apoiada em morros altíssimos, ensolarada, silenciosa. durante à noite consigo ouvir muitos bichos, cães, galinhas, vacas. um homem me conta que na serra da caraça há onças e muitas aranhas. a floresta nos ronda.

durante a manhã, ando até a curiosa igreja de santa quitéria e descubro atrás dela uma estrutura arredondada que funciona como caixa d'água, mas tem jeito de observatório astronômico. subo nela por uma escada que acho ali perto e ali em cima me deparo com a vista mais impressionante que já vi até agora. gostaria de ter ficado muito tempo ali, mas pressinto que posso correr algum perigo porque o local é muito deserto. não sei se estou pensando com minha cabeça de rio de janeiro, ou se é apenas prudência. mas decido não discutir com minha intuição. uso o arrepio também como uma bússola.

depois passo a tarde tomando o delicioso vinho de jabuticaba produzido na região. visito a impressionante e inacabada igreja central. e busco a calma necessária para não ficar inquieta diante de tanta quietude. desisto de ocupar o dia e deixo o dia me ocupar.

agora na rodoviária de BH. saí de catas altas bem cedo e cheguei aqui umas 3 horas depois. comprei minha passagem para salvador e embarco apenas à noite. serão 24 horas de estrada. e meu corpo já anseia pelo calor e o mar que é pra onde eu sempre volto.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

ouro preto - dia 2

tenho sonhos explosivos: brigas, embates, precipitações. busco me distanciar dos caminhos conhecidos, e meus sonhos me colocam diante do mais íntimo de mim. sinto medo e coragem misturados, entranhados. é preciso me entregar totalmente à intensidade dessa experiência, é preciso deixar de calcular a rota de fuga. 

ontem entrei em mais igrejas e mais museus. e há tanto furo e tanta voluta, volumes e texturas que me calam com um deslumbre fácil.  nesses lugares, ouço algumas histórias banais e umas outras maravilhosas. escuto um guia que conta aos visitantes sobre como as missas, em séculos passados, contavam com uma fumaça alucinógena que era emanada pelas velas e subia até a nobreza que sempre ficava num andar acima do resto das pessoas. alucinados, viam os anjos dançarem e doavam ainda mais dinheiro para a paróquia. bela imagem essa, de uma nobreza alucinada. sorri em silêncio, fingindo que não ouvia furtivamente a explicação que não era endereçada a mim.

fico apaixonada pelos ex-votos, pinturas singelas e populares que agradecem milagres. me tocam mais que qualquer igreja maravilhosa.

enquanto tomo café e escrevo, vejo um passarinho bicando a própria imagem em um espelho. e eu penso: de que adianta voar e continuar fascinado pela própria imagem conhecida. tomo isso como um aviso. 

sinto as pernas doerem a cada ladeira que subo. o coração acelera muito e fico sem fôlego. e toda vez que minha respiração dificulta lembro do sonho que tive uns antes de vir no qual eu estava com moradores de rua e todos eles falavam sozinhos ou respiravam longamente. o sonho era só isso, mas tinha uma solenidade profunda. ao fim, eu ia embora dizendo para eles: deus é fôlego. aqui, a cozinheira do hostel, a cada vez que saio, me diz gentilmente: vai com deus. recebo, grata, deus como um potente fôlego.

faz meses que pesquiso a prática da viagem entendendo-a como uma prática de perda: uma perda que produz um ganho. a primeira perda que sofro aqui é a do próprio medo de perder. é preciso perder esse medo para ganhar, para viajar sob o signo do ganho. comer a cidade com os olhos e deixar que meus tumultuosos sonhos me indiquem apenas o que é fantasma, o que sou quando sou passarinho bicando o espelho. quero antes sobrevoar, roçar o corpo nos solos e não criar raiz. ou criar raízes móveis. 

planejo meus próximos passos. quero ir para uma pequena cidade chamada catas altas. vou à rodoviária me informar sobre passagem e horário e descubro que há dois municípios com o mesmo nome. um chamado catas altas da noruega e outro apenas catas altas (que antes era catas altas do mato dentro). vou para catas altas, apenas. lá na rodoviária sou informada da história de um padre que vive na serra do caraça e que fez amizade com os lobos locais. me recomendaram ir visita-lo, para ver os lobos que, de tão mansos, recebem comida das mãos do padre. fico tentada a ver os lobos, mas acho que prefiro isso como história. e também não sei se quero lobos comendo na minha mão. quero antes os lobos pelo caminho, como o aviso de toda a ferocidade do mundo que margeio com meus passos incertos. 


domingo, 16 de junho de 2013

ouro preto

sonhos galopantes dentro de um ônibus veloz. minhas mãos inquietas, sob as coxas, com frio e movidas pelo ímpeto de uma despedida prolongada. atenta aos sinais que vão ficando toda horas mais distantes. minhas coisas caíram, acordo com tudo rente ao chão. atenção sonolenta, a carne atravessada pelo peso e pelo frio. chego em uma cidade que é toda névoa. igrejas feito sentinelas de um passado persistente ladeiam meu caminho tonto. ziguezagueando pelo chão liso, torço um pé, depois ando com a atenção de um toureiro. vejo uma mulher que olha a cidade lá de cima. a fotografo como se ela fosse eu: quieta e leve. o peso nas minhas costas é só uma impressão. me sinto solta, tão leve que pressinto a nostalgia de um peso qualquer. pessoas pela rua indicam meu caminho, me dedicam uma gentil atenção.

depois, no hostel, esperando para saber se vou poder ficar ali, já estou apaixonada pela vista que lembra uma pintura de guignard. quero ficar, mas é cedo e preciso esperar até depois do meio-dia. na tevê falam sobre banheiras, piscinas, yoga, risadas. o rapaz do hostel, enquanto espero, me presenteia com dois pães de queijo. o mundo é muito bom. me sinto ansiosa por estender meu corpo na cidade. experimentar a cachaça, andar sem rumo, espalhar minha pele pelas ruas, perder o centro. uma placa, na praça central, me avisa: aqui em poste de ignominia esteve exposta sua cabeça.

arde minha garganta a cachaça que tomo lentamente sentada na praça gelada. já tenho onde ficar, e tenho tudo: uma cama, banho quente e a pintura de guignard como vista imediata. por enquanto, me sinto transportada para uma temporalidade confusa. ruas que são labirintos, igrejas como castelos, museus templos de extintos heróis. escorre invisível sangue de mártires antigos pelas pedras. a cidade me acolhe com calma e ferocidade e há a promessa de percursos serpentinos, céus barrocos que rasgam igrejas, anjos demoníacos, cachaças infernais e o peso de um passado que a tudo vigia.